sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Sarajevo (continuação), a parte bela que você desconhece


A fama mundial da Bósnia e de Sarajevo como lugares sofridos marcou a imagem que as pessoas fazem daqui, desde a Guerra dos Bálcãs dos anos 1990. Não é uma imagem falsa; há mesmo muito de uma realidade triste que deixou marcas na vida de muitas pessoas, como na infraestrutura que permanece degradada e marcada por buracos de bala na periferia da cidade. Já comentei dessa parte no meu post anterior, com a minha chegada à cidade. 

O que as pessoas desconhecem de Sarajevo é o seu outro lado, mais antigo, bem preservado, bonito, e que faz dela uma das mais distintas e curiosas cidades do continente europeu. Na minha opinião, Sarajevo é a capital mais subestimada por quem visita a Europa.

Razões? Vejamos: (1) Sarajevo é uma capital predominantemente islâmica, numa Europa que estamos acostumados a (erroneamente) imaginar como exclusivamente cristã. Os quase 500 anos de colonização turca, quando a Bósnia foi governada pelo Império Otomano (de 1450 a 1878!) não são pouca coisa. (2) As colinas ao redor da cidade, que um dia abrigaram tanques de guerra, continuam verdes. Dão um ambiente gostoso e fazem um lindo pano de fundo. (3) A forte influência turca deixou aqui na Bósnia uma gastronomia diferente, deliciosa. 

E não menos importante, você assiste à superação de que o ser humano também é capaz. Conheci indivíduos inesquecíveis nesta minha estadia aqui.
Uma vista de Sarajevo e suas colinas. Os detalhes em madeira na janela da pousada faziam a vista parecer um filme.
Acomodamo-nos, eu e uma amiga minha turca, na pousada de Dženan [Djenãn], um figuraça. Parecia algum dançarino do Qual é a música?, do SBT. Jovem, loiro de cabelo liso que caía pela testa e precisava ser sempre charmosamente tirado da frente do olho, e aquele sorriso exageradamente alegre dos dançarinos de televisão. Supus que era gay, até conhecer a sua esposa  uma linda jovem de olhos azuis e a cabeça coberta pelo véu islâmico  e seus 4 filhos pequenos. Uns amores. Moravam todos na pousada, numa seção ao lado.

Estávamos a curta distância de caminhada do centro histórico  o que recomendo que qualquer visitante também faça. 

O centro histórico de Sarajevo é chamado Baščaršija. Calma, não se assuste com o tanto de acentos circunflexos invertidos. Lição básica pra as línguas eslavas que usam o alfabeto latino: ž tem som de j (como em Juliana), š tem som de sh, e o č tem som de tch. Então Baščaršija soa Básh-TCHÁR-shia, que vem da língua turca e quer dizer algo tipo "Mercado Central". (Viu como é tudo muito simples? O próprio nome Sarajevo deriva do turco saray, que quer dizer "palácio". A cidade foi fundada pelos otomanos em 1461). 

Esse centro histórico é charmoso e agradável. Bonitinho de um jeito que eu nunca tinha ouvido falar que existisse em Sarajevo. 
Calçadões no centro histórico de Sarajevo, com uma mesquita de estilo turco ali atrás. 
Entrada para uma mesquita.
Os pátios em frente são quase sempre bem acolhedores. E como os muçulmanos devem sempre lavar os pés e as mãos antes de orar, há sempre água (potável) disponível, o que vem a calhar no verão.
Quinquilharias mil pelos bazares do centro. Até uma bandeira do Brasil ali hasteada.
E a comida aqui na Bósnia merece menção especial. Dženan nos recomendou em particular este restaurante da foto abaixo
Pra que ninguém ache que eu estou inventando, eis o cardápio do lugar. A comida é boa, apesar do desafortunado nome.
Não, não há nenhum sinal eslavo distinto aí; o nome do restaurante é Sofra mesmo. Preferimos "sofrer" à noite, pois durante o dia come-se tranquilamente e com muitas opções no centro histórico. 

Aqui em geral na Bósnia você come bem, ao contrário do que passei na vizinha Croácia, fiquei a pizza, macarrão e peixe frito por uma semana (aqui). Já aqui na Bósnia até arroz com feijão eu achei! E barato! Além de belos temperos, caldos, doces, e um milhão de comidas de influência turca. 

Depois de penar com as culinárias insossas da Croácia e da Áustria, pensei comigo mesmo e quase postei no Facebook: Que pena que os turcos não chegaram mais longe quando invadiram a Europa. Mas evitei, pra não açoitar os meus amigos europeus.
Feijão com arroz em Sarajevo! Não é idêntico ao brasileiro, como você pode ver pelo feijão, mas é saboroso.
Outros pratos, com diversidade de opções, e o pão chato característico do Oriente Médio. 
Tudo isso num restaurante simples, com ar de cantina. Aquele escudo em azul e amarelo ali acima é a bandeira da Bósnia.
Pra quem desconhecia essa influência turca na Europa, eis o pano de fundo histórico pra você entender. Coisas curiosas e que talvez tenham sido "puladas" nas suas aulas de História. 

Por volta de 1400, o clã Otomano tornou-se dominante dentre os turcos na Anatólia, a península onde hoje é a Turquia e que costumava ser Império Bizantino. Aliás, "Império Bizantino" é uma invenção póstuma do historiador germânico Hieronymus Wolf, uma alcunha por ele dada em 1557 ao Império Romano do Oriente. Em 285 DC o Império Romano foi dividido em duas metades administrativas; Roma veio a cair em 476 DC, mas Bizâncio (atual Istambul) no oriente, rebatizada de Nova Roma pelo imperador Constantino em 324 DC e que acabou conhecida como Constantinopla [Constantino + pólis] perdurou até ser conquistada pelos turcos em 1453 (maiores detalhes dessa conquista aqui). Eles se viam  e eram conhecidos pelos outros  como romanos, não como "bizantinos".   

Rumélia, portanto, era o nome dado pelos turcos às posses tomadas desses romanos na Europa. Os turcos otomanos conquistariam esse longevo Império Romano do Oriente por completo. Conquistaram toda a atual Grécia no século XV; invadiram Belgrado, a região da Sérvia e de todos os Bálcãs, onde hoje estão também Romênia e Bulgária; invadiram a Hungria e tomaram Budapeste em 1541; e atacaram os portões de Viena, na Áustria, duas vezes. 

Feliz ou infelizmente, os turcos nunca conseguiram tomar Viena. Aqueles se tornaram os limites ocidentais do Império Turco Otomano, mas todo o sudeste da Europa permaneceria sob seu domínio por quase 500 anos, até as revoltas nacionalistas do século XIX. Romênia, Bulgária, Bósnia, Sérvia, e a própria Grécia de hoje são fortemente influenciadas pela cultura turca (na culinária, hábitos, músicas, danças, e até mesmo no seu mix genético), embora não gostem muito de admitir. Afinal, foi quase meio milênio de misturas sob domínio turco.

Com o tempo, o nome Rumélia passou a ser substituído por Bálcãs, que em turco quer dizer cadeias de montanhas com florestas, características na região e lindas, que podem ser vistas até hoje, como aqui na Bósnia e na Transilvânia na Romênia. O mapa abaixo pode ajudar a esclarecer a geografia.
Eis o mapa. Tudo em colorido chegou a ser domínio turco otomano. (Clique para ampliar.)

Aqui em Sarajevo você ainda encontra muitas casas de arquitetura tradicional dessa época colonial turca. Uma boa de ser visitada é o museu Casa de Svrzo, que pertenceu a uma família rica do século XVIII. (Tentar pronunciar o nome é parte da diversão. Os eslavos adoram consoantes).
Casa de Svrzo, do século XVIII.
Uma sala. Tudo devidamente coberto por tapetes, tradição turca.
Um dos quartos.
E, como sempre perguntam, o banheiro, ali com o triângulo mágico.
Eu na varanda da casa de Seu Svrzo.
Os turcos também deixaram aqui outras coisas bonitas, como muitos doces, e a sua maneira tradicional de preparar o café. Mas cuidado: não vá achando que os Bósnios têm saudades daquela época. Embora valorizem esta sua cultura de forte influência turca, eles hoje a tem como sendo puramente sua. 

Chegamos a um restaurante no centro, em busca de um café tradicional desses e que é diferente do ocidental mais comum, e a minha amiga caiu na besteira de perguntar: "Vocês têm café turco?". (O interessado era até eu, e ela que tomou a queimada, coitada). "Aqui não tem nada turco", respondeu o garçom sem nem olhar.

Glup. Bom, mas se você pedir por "café bósnio" (que é exatamente a mesma coisa), eles atendem com presteza. Dá uma ideia dos sentimentos étnicos na região. Coisas do nacionalismo.
Café que tomamos em Sarajevo, em estilo tradicional, servido com o doce turco no palito. (Ou será que acham que o manjar turco, famoso Turkish delight, virou bósnio também?). Para os menos versados, esse café tradicional vem com o pó dentro, e daí tem todo aquele lance de ler a borra que ficar na xícara. O sabor dele também é diferente.
Este é um kadaif (nome desses cabelos de anjo), em modo de bolo. Há outros formatos. Nozes em cima.  
Este é o tulumbe, que parece um churro. Estes doces turcos são doces pra cacete, então não faça como eu que saiu pedindo "um de cada". A glicose sobe à cabeça de um jeito que chega uma hora que você tem que parar.

Para digerir, uma bela caminhada. Mesmo fora do "Mercado Central", em áreas de menor aparência turca e cara mais típica de Europa, há ruas e praças agradáveis, onde você vê pessoas hoje vivendo numa bem-vinda paz, ainda que a vida aqui seja simples e muitos continuem pobres.
Homens jogando xadrez na praça, com uma igreja ao fundo. Aqui há uma mistura de religiões. Se por um lado eclodiram guerras pela diferença, por outro mostra que a convivência pacífica também é possível.
O que não faltava era gente peruando esse jogo. Esse tiozinho mesmo de camisa listrada à direita não parava de dar palpite, entrando no tabuleiro.
A catedral da cidade.
Ponte sobre o Rio Miljacka, que cruza Sarajevo.

Anoitecia, e Dženan nos havia recomendado visitar a tradicional casa de chás do seu amigo Džirlo [Djírlo], curiosíssima figura que parecia uma versão mais idosa de Jesus Cristo Super Star.

Era meio atrapalhado, e sua mulher é quem geria realmente a loja. Mas a alma do lugar era ele. Ficava ali de papo com os clientes e contando histórias. De quebra, falava um pouco (ou um muito) de cada idioma. Certamente viveu a guerra, mas conseguiu manter-se alto astral. Claramente um profeta do atual "deboísmo" avant la lettre.
Eu e Džirlo.
A propósito, os chás são excelentes. (Procure por Džirlo e Sarajevo na internet que você acha, e poderá visitar pessoalmente.)

Garanto que toda esta cultura você pouco associava a Sarajevo, e nem imaginava que ela tivesse esses recantos bonitos. Eu fiquei positivamente surpreso e muito contente em descobri-la. Como disse: certamente uma das cidades mais distintas e provavelmente a capital mais subestimada de toda a Europa.

Ainda veríamos mais da Bósnia, partindo daqui pelo interior do país. A seguir.
Praça no centro de Sarajevo, em Baščaršija. Aprendeu a pronunciar? Pelo sim ou pelo não, visite e ouvirá.
Sarajevo, em seu lado belo, e que você desconhecia.

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